
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a julgar na 3ª Seção nesta quarta-feira (8/8) um pedido de salvo-conduto para o cultivo doméstico de Cannabis sativa com finalidade medicinal. O caso é julgado no HC 802.866. Em seu voto, o ministro-relator, Messod Azulay Neto, indeferiu o pedido por considerar que a medida não é a mais eficaz para o tratamento do paciente. Ele foi acompanhado pelo ministro João Batista Moreira, que antecipou seu voto depois do pedido de vista do desembargador convocado Jesuíno Rissato.
Em algumas decisões nas Turmas, o STJ tem concedido habeas corpus preventivo para que pessoas que estejam em tratamento de doenças possam cultivar a cannabis sem o risco de ter problemas com a polícia e com a Justiça brasileira, o que gerou questionamentos levantados pelos ministros Sebastião Reis e Schietti Cruz em relação à mensagem que o tribunal passa à sociedade e à ausênciade segurança jurídica.
A posição do relator
Em seu voto, Azulay Neto disse reconhecer a importância da garantia do direito fundamental à saúde e da proteção da dignidade de vida. Entretanto, embora considere que a jurisprudência da Corte esteja caminhando na concessão da ordem de habeas corpus para permitir a utilização doméstica da droga para fins medicinais, manifestou-se de forma divergente ao entendimento acerca da matéria.
O ministro citou a recente decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em barrar a importação de cannabis in natura para reforçar a sua posição. A proibição da Agência considera que a regulamentação atual dos produtos de cannabis no Brasil não inclui a permissão de uso de partes da planta. ”Então, eu indago, de onde o paciente irá comprar as sementes para plantar? De traficantes? É dali que se compraria? Ou o Poder Judiciário forneceria? Essa é a pergunta. Ele vai plantar de onde? Quem é que vai fornecer?”, questionou Azulay Neto.
Segundo o ministro, a extração doméstica do óleo, pelo simples fato de ser produzido em um ambiente inadequado [como seria o cultivo residencial], revela a verdadeira impossibilidade de observância do devido cuidado com a segurança da composição e da dosagem da substância. ”É indispensável que se tenha em conta que, atingir a dose correta de um medicamento, seja ele qual for, à base de cannabis ou não, é um processo complexo que envolve conhecimentos especializados em botânica, química, farmacologia e medicina”, sustentou o ministro.
”Autorizar essa via de produção doméstica do óleo derivado da cannabis, com o fundamento da tutela de um suposto risco à liberdade de locomoção seria diminuir o trabalho dos agentes de saúde e seguranças sanitárias que se debruçam por anos na análise de medicamentos que atendem à finalidade e que se propõem e não geram riscos exacerbados à saúde das pessoas”, prosseguiu.
De acordo com Azulay Neto, a produção farmacêutica, por outro lado, está submetida a uma regulação rigorosa, conta com um aparato tecnológico adequado e possui um robusto sistema de qualidade e segurança, além do controle estatal do processo de produção. ”A droga pode ser facilmente encontrada em farmácias do Brasil, que disponibilizam os medicamentos em diversas dosagens. É possível se conseguir isso plantando maconha dentro de casa?”, indagou o relator. ”Vejo, neste ponto, que a maior parte de pedidos de salvo-conduto que chegam neste Tribunal são referentes ao alto custo dos medicamentos”, continuou.
”Eu não sou a favor nem contra a maconha. Se o Estado resolver liberar a maconha, ótimo. A partir de então o sujeito poderia plantar. Mas, no momento, o Poder Legislativo e o Executivo não liberaram”, sustentou o relator.
Por isso o ministro afirma que não via como o habeas corpus pedido pelo paciente poderia suprir suas necessidades, visto que existem no Brasil outras alternativas muito mais eficazes e lícitas. ”O remédio está aí, é só pedir o juiz que seja determinada a compra. Isso aí os juizados especiais fazem”, disse. O ministro João Batista Moreira, mesmo com o pedido de vista, antecipou o seu voto e acompanhou o relator.
As críticas de Sebastião Reis e Schietti Cruz
Apesar do adiamento da apreciação da matéria pelos outros ministros, os ministros Sebastião Reis e Rogerio Schietti Cruz questionaram os rumos do julgamento. Em sua fala, Sebastião Reis disse se preocupar com a instabilidade em uma questão como essa pelo fato de o posicionamento favorável adotado tanto pela 5ª quanto pela 6ª Turma do STJ, referente à concessão de habeas corpus para o cultivo da cannabis sativa para fins medicinais, ser recente.
”Eu entendo a posição do ministro Azulay, mas se cada um chegar na Corte e começar a questionar todos os entendimentos, eu acho que iremos passar uma mensagem para o Ministério Público, para a magistratura, para a advocacia, de que não existe realmente nenhuma estabilidade. Nós iremos continuar mexendo em uma matéria a cada dia que passa”, questionou Sebastião Reis.
Logo depois, o ministro Rogerio Schietti Cruz também pediu licença para comentar o voto do relator. Assim como Sebastião Reis, ele externou sua preocupação em tão pouco tempo de um debate que foi levado à Corte e com votos bem definidos e com sustentação oral, se propor uma modificação tão radical.
Além disso, Schietti Cruz também disse estar preocupado quanto ao momento em que esta revisão é proposta. ”Nós estamos discutindo hoje na Suprema Corte algo que vai muito além do que singelamente se decidiu aqui no STJ: a autorização do cultivo da cannabis sativa para fins medicinais”, sustentou o ministro.
Schietti Cruz fez referência ao julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, que foi retomado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). ”O Supremo caminha a julgar pelo último voto proferido por um eminente magistrado, eminente ministro, que evoluiu no seu pensamento, que já chegou a ser alguém contrário a todo o tipo de uso da cannabis sativa ou da maconha, hoje profere um voto muito mais avançado em relação aos seus eminentes colegas que já haviam votado”, argumentou.
O caso concreto do HC 802.866
Em sua sustentação, realizada nesta quarta-feira, o advogado Diogo Pontes Maciel, que representou o paciente, disse que o homem foi diagnosticado com ansiedade generalizada e que, em razão da ineficácia dos medicamentos convencionais, foi prescrito o tratamento com o canabidiol, a cannabis medicinal. Pontes Maciel sustentou que por se tratar de um meio ainda muito caro aos brasileiros, o paciente solicitou o fornecimento do medicamento junto à Secretaria Estadual do Paraná.
Contudo, ele alega que a Secretaria do Estado não cumpriu com o seu dever constitucional de prover a saúde aos habitantes. Assim, o paciente passou a solicitar a concessão do pedido para que ele pudesse cultivar a cannabis sativa em sua casa. A defesa do homem citou o entendimento das duas Turmas do STJ e sustentou que em hipótese alguma a planta medicinal deveria ser considerada como um entorpecente, na medida em que a própria Anvisa, por meio da RDC 156 e RDC 327, possibilita a comercialização e importação da cannabis para fins medicinais.
Na hipótese, o paciente apontou um constrangimento ilegal na negativa de autorização para o cultivo da planta em sua residência para fins exclusivamente medicinais, e requereu, em caráter liminar e no mérito, a concessão de ordem para que fosse expedido o salvo-conduto definitivo, autorizando-o a cultivar 23 plantas de cannabis sativa em floração mensal em sua casa.
Assim, com a concessão do salvo-conduto, ele não poderia ser incriminado pelos delitos previstos na Lei de Drogas, cabendo ao paciente atender os requisitos sanitários para a fabricação de seu medicamento.
Em 20 de junho de 2023, antes do recesso do STJ, a 5ª Turma do Tribunal declarou, por unanimidade, a incompetência da apreciação do caso e determinou a afetação do feito à 3ª Seção.
Motivos dos ministros do STJ concederem salvo-condutos para o cultivo de cannabis sativa com fins medicinais
Em decisão do dia 5 de junho de 2023, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca apontou que tanto a 5ª Turma quanto a 6ª Turma do STJ consideram que a conduta de plantar cannabis para fins medicinais não preenche a tipicidade material, razão pela qual ”se faz necessária a expedição do salvo-conduto quando comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde”.
Na hipótese apreciada pelo ministro, a paciente fazia uso da terapia canábica para tratamento de fibromialgia, com base em prescrição médica chancelada pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) na oportunidade em que autorizou a importação do medicamento feito à base de canabidiol.
Seguindo a mesma linha, o ministro Rogerio Schietti Cruz deu provimento a um recurso em habeas corpus para autorizar um homem diagnosticado com ansiedade generalizada a plantar e cultivar de 238 a 354 pés de cannabis por ano, com o objetivo de extrair as propriedades medicinais da planta para uso terapêutico próprio.
Neste caso, o paciente convive, desde criança, com graves dores no estômago e distúrbio do sono. Assim, por conta do seu diagnóstico, o homem iniciou em 2020 um tratamento com óleo de cannabis medicinal, sendo este devidamente prescrito e acompanhado por médico.
Em sua decisão, o ministro Schietti apontou que a pretensão do paciente está amparada não só pela prescrição médica, mas também por uma autorização da Anvisa para importação do canabidiol, o que evidencia que a própria agência de vigilância sanitária reconheceu a necessidade de o paciente fazer uso do produto.
Ambos os processos tramitam em segredo de Justiça.