
A tributação tem diversas funções. A função arrecadatória é a mais conhecida: é necessário arrecadar recursos para prover o Estado de meios para o exercício de suas atividades. Além disto, o tributo também tem função redistributiva: percebe-se que, na maioria dos países desenvolvidos, o sistema tributário constitui instrumento para redistribuir renda dos mais ricos para os mais pobres. E o tributo tem, ainda, uma função reguladora, podendo ser utilizado para induzir mudanças no comportamento dos atores do setor privado, com incentivos às atividades que o Estado deseja promover e desincentivos às atividades que quer desencorajar[3].
A função regulatória está, como aduz Reuven Avi-Yonah, bem estabelecida na doutrina, podendo ser sustentado que “alguns tipos de tributos, como aqueles de natureza pigouviana (desenhados para dissuadir certas atividades, de modo a forçar os atores privados a internalizar os custos sociais daquelas), têm natureza inteiramente regulatória.”[4]
O mencionado autor se refere àquelas atividades que envolvem falhas de mercado denominadas de externalidades, ou seja, os custos ou ganhos da atividade privada que, em virtude de falha de mecanismo de mercado, são suportados ou fruídos pela coletividade, no lugar daquele que os gerou. A tributação pode atuar como meio de correção destas falhas e isto pode ser observado, embora não sem controvérsia[5], no âmbito das chamadas “sin taxes”.
As “sin taxes” não têm relação, apesar do nome em inglês, com conceitos religiosos ligados ao pecado. Elas dizem respeito a tributos incidentes sobre atividades consideradas danosas à sociedade, como o consumo de fumo, álcool e bebidas açucaradas, em razão de suas externalidades negativas[6]. Assim, talvez uma denominação mais adequada para elas pudesse ser a de “imposto ético”[7].
Qualquer que seja o nome que se lhes dê, o fato é que as “sin taxes” vêm sendo comumente justificadas como tributos correlacionados aos custos sociais que tal consumo (de fumo, álcool e bebidas açucaradas, por exemplo) gera, forçando os contribuintes a internalizar o custo total de suas atividades, inclusive no caso daqueles que não o suportam diretamente[8].
Dentre as diversas críticas que vêm sendo feitas a estes tributos, três delas merecem destaque. A primeira é a de que a justificação acima pode ser utilizada para, simplesmente, servir como “cortina de fumaça” e promover maior arrecadação mediante a criação de novos tributos ou majoração das “sin taxes” existentes.
Rachelle Holmes Perkins mostra que isto aconteceu nos EUA. Em razão da recessão e dos enormes déficits federais e estaduais nos anos de 2011 e 2012, a instituição ou majoração de “sin taxes” foi vista como uma forma de arrecadação de recursos relevantes sem a resistência política que se materializaria no caso de instituição ou majoração de tributos tradicionais. Esta reduzida resistência política está ligada a duas circunstâncias: (i) as “sin taxes” não se aplicam à maioria dos contribuintes; e (ii) elas têm por objetivo promover um bem social, ao qual é difícil se opor[9].
A segunda crítica comumente feita é a de que é difícil fixar o nível de tributação adequado para corrigir a externalidade negativa. Com isto, acaba sendo necessário definir o nível de incidência tributária com base num compromisso entre a correção da externalidade e a distorção das decisões ordinárias do consumidor que ele produz[10].
Já a terceira crítica é a de que as “sin taxes” têm potencial efeito regressivo: tais tributos – cobrados tendo em vista o consumo e não a renda – implicam maior carga tributária relativa no que diz respeito às camadas de menor renda da população. Tal problema poderia ser mitigado considerando-se sua situação no contexto do sistema tributário como um todo: esta fonte específica de regressividade poderia ser, ao menos, parcialmente revertida mediante ajuste no sistema de tributação da renda[11].
Estas críticas não têm impedido o desenvolvimento das “sin taxes” no mundo. Tratando-se especificamente da tributação de bebidas açucaradas (“soda taxes”), que merece maior atenção da doutrina no Brasil, o México foi o primeiro país a criar um tributo sobre tais bebidas com a finalidade de lidar com os problemas decorrentes da obesidade e do alto consumo de refrigerantes por crianças e jovens[12].
Ressalte-se, porém, que a tributação não foi a única estratégia utilizada para lidar com estas questões naquele país. A abordagem mexicana incluiu iniciativas diversas, como campanhas de conscientização e de incentivo a práticas desportivas[13]. E parece ter dado certo. A partir de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), Celso de Barros Correia Neto assinala que resultados preliminares apontaram “uma redução, em dezembro 2014, de 6% na compra de bebidas açucaradas, em comparação ao ano anterior. O percentual chega a cerca de 17% na camada social mais pobre da população.”[14]
Países como Chile, Hungria, França, Bélgica, entre outros, adotaram medidas semelhantes. Neste contexto, a OMS recomenda, desde 2015, a adoção de tributação específica de bebidas açucaradas, com alíquota de 20% ou mais[15]. Embora mais de 40 países já tenham adotado tributos desta espécie, a maioria tem preferido alíquotas mais baixas[16].
No Brasil, o IPI e o ICMS poderiam ser utilizados no desenho de políticas tributárias específicas que implicassem incidência mais gravosa sobre operações com bebidas açucaradas[17]. Aborda-se aqui especificamente o IPI, porque parece haver uma distorção na legislação deste imposto no que diz respeito a bebidas açucaradas.
Como regra geral, a incidência do IPI sobre as operações com bebidas açucaradas é regida pela Lei nº 13.097/15 (especialmente, arts. 15 a 23 e 33) e pelo Decreto nº 8.442/15. A respectiva alíquota aplicável é de 4%. Há, entretanto, uma disciplina normativa específica para os insumos utilizados na preparação de tais bebidas (preparações compostas, não alcoólicas, na forma de extratos concentrados ou sabores concentrados, classificadas na posição 2106.90.10 Ex 01 da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI), que cria, em associação com o regime tributário especial de que goza a Zona Franca de Manaus, uma situação peculiar.
O sistema constitucional de não cumulatividade do IPI (art. 153, §3º, II da Constituição) não admite, consoante a jurisprudência pacífica do STF, o direito ao crédito deste imposto na aquisição de insumos não tributados, isentos ou sujeitos à alíquota zero (RE nº 398.365 RG/RS, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27/8/15 – reconhecimento de repercussão geral com reafirmação de jurisprudência).
Entretanto, em relação aos insumos oriundos da Zona Franca de Manaus (ZFM), a posição do STF é distinta e foi reafirmada no julgamento do RE nº 592.891/SP (Pleno, Relª Minª Rosa Weber, j. 25/4/19). A tese fixada (em reiteração de jurisprudência) foi a seguinte: “Há direito ao creditamento de IPI na entrada de insumos, matéria-prima e material de embalagem adquiridos junto à Zona Franca de Manaus sob o regime da isenção, considerada a previsão de incentivos regionais constante do art. 43, §2º, III, da Constituição Federal, combinada com o comando do art. 40 do ADCT“.
Assim, os estabelecimentos industriais que produzem insumos (no caso das bebidas açucaradas, as preparações compostas anteriormente mencionadas) e que estão estabelecidos na ZFM os remetem – sem a incidência de IPI (isenção) – para outros estabelecimentos responsáveis pela preparação/envasamento de bebidas açucaradas em diversas regiões do país. Isto permite o crédito do imposto aos estabelecimentos que recebem os insumos. A consequência é bem percebida por Celso de Barros Correia Neto: “Quanto maior a alíquota ao insumo, maior o crédito a que fazem jus. E, há anos, a alíquota aplicável ao insumo é superior à aplicável ao produto final, o que, na prática, permite o acúmulo de créditos e desonera consideravelmente as bebidas fabricadas com insumos provenientes dessa região.”[18]
Por isto, para aquele autor, “o peculiar regime estabelecido em favor da Zona Franca de Manaus (ZFM) cria uma considerável desoneração tributária para fabricantes de refrigerantes, refrescos, néctares, bebidas à base de mate, isotônicos, energéticos e outras bebidas açucaradas. O aproveitamento de crédito integral na aquisição de xaropes ou concentrados (insumos), saídos da ZFM com isenção total, permite a acumulação de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). O incentivo fiscal é potencializado pelo fato de a alíquota aplicável aos insumos ser superior à cobrada dos produtos finais (bebidas).”[19]
Esta situação se mantém: de acordo com o Decreto nº 10.523/20, a alíquota do IPI incidente nas operações com tais insumos é de 8%, e a alíquota incidente sobre as operações com os produtos finais (bebidas açucaradas) continua a ser de 4% (art. 15, II da Lei nº 13.097/15). Isto leva Tathiane Piscitelli a notar que, no Brasil, não apenas não há um tributo específico para bebidas açucaradas, como também há incentivo fiscal direcionado a um produto nocivo à saúde pública[20].
A constatação é importante e mostra que a discussão da tributação de bebidas açucaradas deve ser aprofundada no Brasil. A tendência internacional é, como se viu, a tributação mais gravosa destes produtos (mais eficiente para mitigar problemas decorrentes da obesidade se acompanhada de estratégia mais ampla, com campanhas de conscientização e de incentivo a práticas desportivas). Ainda que se admita que esta tributação mais gravosa é controversa (considerando-se, por exemplo, as críticas às “sin taxes” anteriormente destacadas) e requer maiores estudos, isto não significa, por outro lado, que a produção de bebidas açucaradas mereça o tratamento tributário que recebe no país.
[1] Este artigo foi pensado e produzido no âmbito da disciplina “Direito e Economia da Tributação”, do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV Direito SP. Agradeço ao Prof. Flavio Rubinstein pelas aulas e pela preciosa orientação e às colegas Morgana Cavalcante de Carvalho, Samantha Maria Peloso Reis Queiroga e Tatiane Moreira de Souza pelos inputs e pelas discussões em nossas indispensáveis reuniões semanais.
[2] Mestrando em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Advogado em São Paulo.
[3] AVI-YONAH, Reuven S. Taxation as Regulation: Carbon Tax, Health Care Tax, Bank Tax and Other Regulatory Taxes (August 23, 2010). U of Michigan Law & Econ, Empirical Legal Studies Center Paper no. 10-020, U of Michigan Public Law Working Paper no. 216. Disponível em: https://www.coupondealsclub.com. Acesso em: 27/5/21.
[4] Tradução livre do original em inglês: “(…) it can be argued that some types of taxes, such as Pigouvian taxes (designed to deter certain activities by forcing private actors to internalize their social costs), are entirely regulatory in nature.” AVI-YONAH, Reuven S. Ibidem.
[5] Cf., por exemplo, PETKANTCHIN, Valentin. The Pitfalls of So-Called “Sin” Taxation. IEM’s Economic Note, 2014, 4p. Disponível em: https://www.lancedonovan.com. Acesso em: 27/5/21.
[6] No caso das bebidas açucaradas, por exemplo, pesquisas sugerem que o alto consumo está associado ao ganho de peso em crianças e adultos e ao aumento de risco de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e síndrome metabólica. Há, assim, aumento dos custos com assistência médica, que não é suportado pelos fabricantes (LE BODO, Yann et al.Taxing Soda for Public Health: a Canadian Perspective. Springer, 2016. pp. 38 a 40).
[7] SCAFF, Fernando Facury. A Proposta de Paulo Guedes para Tributacão do Pecado e do Sexo.In:CONJUR, 27 de Janeiro de 2020. Disponível em: https://www.windermerevancouver.com. Acesso em: 27/5/21.
[8] PERKINS, Rachelle Holmes. Designing Taxes in the New Sin Era.In: Brigham Young University Law Review, Vol. 2014, no. 1, p. 114. Disponível em: https://www.chaosgfx.com. Acesso em: 27/5/21.
[9]Idem.Ibidem. p. 110.
[10] HINES JR., James R. Taxing Consumption and Other Sins.In:Journal of Economic Perspectives, vol. 21, no. 1, 2007, p. 64. Disponível em: https://www.chaosgfx.com. Acesso em: 27/5/21.
[11]Idem.Ibidem. p. 65.
[12] PISCITELLI, Tathiane. Tributo sobre o Pecado ou Política Tributária de Saúde Pública?In:Valor Econômico, 4 de Fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.lancedonovan.com. Acesso em: 26/5/21.
[13] CORREIA NETO, Celso de Barros. Tributação de Bebidas Açucaradas no Brasil: Caminhos para sua Efetivação.In: Estudos das Consultorias Legislativa e de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.windermerevancouver.com. Acesso em: 26/5/21.
[14]Idem.Ibidem. p. 14.
[15] WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Fiscal Policies for Diet and Prevention of Noncommunicable Diseases. Technical Meeting Report. 5–6 Maio 2015. Genebra, Suíça, 2016. Disponível em: https://www.coupondealsclub.com. Acesso em: 27/5/21.
[16]UNICEF.Implementing Taxes on Sugar-Sweetened Beverages: An Overview of Current Approaches and the Potential Benefits for Children. Genebra: Unicef, 2019. Disponível em: https://www.lancedonovan.com . Acesso em: 27/5/21.
[17] Cf. SCAFF, Fernando Facury. Ibidem.
[18] CORREIA NETO, Celso de Barros. Ibidem. p. 35.
[19]Idem.Ibidem. p. 4.
[20] PISCITELLI, Tathiane. Ibidem.