
Quem chega a Brasília logo vê. Vindo pelo Eixo Monumental, envolto por cabos de aço que tensionam uma anilha envolvendo o tronco e ganchos presos ao solo, está o buriti. Fixado na praça que acabou por levar seu nome, em frente à sede do Governo do Distrito Federal.
O símbolo da capital no coração do Cerrado é um buriti solitário, transplantado para o meio do concreto. Não é assim sempre. Com até 400 anos de expectativa de vida, os buritis são palmeiras que nascem perto umas das outras nos buritizais, áreas alagadas sazonal ou permanentemente. Podem chegar a 30 metros de altura e dão um coco tão saboroso quanto abundante: cerca de três toneladas por palmeira, divididas em cinco a sete cachos.
Do buriti vem o sustento de comunidades tradicionais no Cerrado, como a geraizeira Cacimbinha, na região de Formosa do Rio Preto, oeste baiano. Com a memória da oralidade, Lusineide Gomes traça o caminho de volta a 1820, de quando se tem notícia dos primeiros habitantes. Os avós da hoje presidente da associação de moradores de Cacimbinha quiçá não imaginariam que os buritis, assim como a água limpa, fossem rarear com a chegada do condomínio de fazendas Estrondo.
A ocupação do solo no Cerrado segue uma lógica diferente da que ocorre na Amazônia, até mesmo por questões legais que envolvem, por exemplo, o Código Florestal, mas as consequências convergem para um mesmo ponto: o de não retorno. Dentro de biomas estressados ao limite da capacidade de adaptação à atividade humana predatória, na margem de manutenção de ciclos naturais como o da água e o do carbono, está a vida.
Como o buriti, a instituição que estreia este espaço cresceu na Amazônia e criou raízes pelo Cerrado. Milhões de anos marcam as interações entre os dois biomas. No quaternário, período geológico que começou 2,6 milhões de anos atrás e no qual ainda vivemos, condições climáticas que ora causavam a expansão, ora a retração da área de distribuição de espécies fizeram os buritis chegarem ao planalto central.
O quaternário corresponde a menos de 0,1% da idade da Terra e, ainda assim, é nele que a continuidade do planeta como o conhecemos está em jogo. Em 1995, pesquisadores e pesquisadoras em Belém, no Pará, fundaram o IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) com a proposta de combinar ciência, atuação local e articulação em políticas públicas. O Fundo Amazônia, o REDD+, os observatórios do Clima e do Código Florestal, o Consórcio da Amazônia Legal, a Política Nacional de Mudanças Climáticas, bem como a Política Nacional e o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais são alguns dos marcos que se desencadearam a partir dessa movimentação.
Uma das primeiras organizações não governamentais do Brasil a ser reconhecida como observadora internacional nas conferências do clima das Nações Unidas, o IPAM se propõe a encontrar um terreno comum entre proteção dos ecossistemas e produção agropecuária responsável, por meio de projetos como o CONSERV, que remunera propriedades rurais por manterem a vegetação que poderiam, por lei, desmatar; entre fortalecimento das economias da sociobiodiversidade e redução das emissões de gases superaquecedores; entre monitoramentos via satélite, da cobertura e uso da terra, de áreas queimadas e desmatadas, das cicatrizes do fogo, e estudos do solo, da água, da fumaça de incêndios, de antas, formigas e outras espécies de fauna e flora.
A série de notas técnicas Amazônia em Chamas, publicada por cientistas do IPAM, deu início à identificação de quais e que tipo de regiões estavam queimando e sendo desmatadas no bioma. Contribuiu com o debate sobre a designação de florestas públicas não destinadas, que concentram mais da metade do desmatamento na Amazônia para virar pasto. Constatou, também, o agravamento do retrocesso socioambiental no governo de Jair Bolsonaro, ao calcular uma alta de 56,6% no desmatamento da floresta. Legado esmiuçado no trabalho Isolados Por um Fio, junto à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, que detectou terras indígenas ameaçadas por fatores que incluem grilagem, desmatamento, incêndios, mineração e desestruturação de políticas.
Povos e comunidades tradicionais no Brasil como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ciganos, quebradeiras de coco, veredeiros e geraizeiros ‒ tal qual Lusineide e os moradores de Cacimbinha ‒ são os primeiros a sentir os impactos. O que de longe pode parecer uma simples “troca” de vegetação nativa por monocultura, em determinada área, tem implicações que se multiplicam proporcionalmente à intensidade com a qual essa “troca” ocorre. Alterações que, no Cerrado, já causam um clima 10% mais seco e 1°C mais quente, segundo estudo publicado em coautoria com pesquisadoras no IPAM. Nas proximidades do desmate, em vilas, aldeias e comunidades, o aumento pode chegar a 3,5°C.
Quando os buritis vieram da Amazônia, o próprio processo evolutivo, ao longo de milhões de anos, cuidou de criar as condições que diferenciam um bioma do outro. Uma vez no Cerrado, os buritis, então, adquiriram características distintas daqueles na Amazônia.
A transformação agora é provocada por ação humana em um tempo muito curto. Se grandes poluidores não reduzirem suas emissões, a temperatura média global ultrapassará o limite recomendado de 1,5°C a mais em relação aos níveis pré-industriais, e isso significa que a vida ficará mais difícil. Primeiro, para as pessoas que já estão sob vulnerabilidade imposta, devido à omissão de políticas que deveriam garantir direitos e dignidade.
Se Lusineide quer lutar por um Cerrado vivo no oeste baiano, é porque o Cerrado é tudo para ela e para tanta gente. Em um levantamento na região do Matopiba, que compreende Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, a equipe do Tô no Mapa contou 3,5 vezes mais comunidades do que há nos dados oficiais. Até o momento, o projeto que está mapeando a realidade de territórios tradicionais no Brasil soma mais de 20 mil famílias vivendo em 229 comunidades. Mais da metade relatou conflitos ligados à disputas pela terra e pela água.
Para uma instituição como o IPAM, produzir e compartilhar conhecimento, também nesta coluna, é o que nos aproxima e ajuda a definir presente e futuro. Os atuais modos de vida hegemônicos estão nos levando ao limite da adaptação. Equidade, justiça climática e social são imprescindíveis se quisermos sobreviver. A boa notícia, lembrou o painel sobre mudanças climáticas das Nações Unidas há duas semanas, é que temos tudo à mão para fazer isso. Coletivamente. Como buritis, ligados à mesma terra, em um buritizal.