
Por meio de um “jabuti” inserido no PL que traz o retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), empresas que atuam com a multiplicação de sementes transgênicas de soja tentam se livrar de cobranças tributárias bilionárias.
O dispositivo, incluído no PL 2384/2023 quando de sua passagem pela Câmara dos Deputados, prevê que os royalties pagos pelas multiplicadoras pelo uso da tecnologia que envolve as sementes transgênicas podem ser 100% deduzidos da base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL). Não é, porém, a primeira vez que o tema aparece em propostas em tramitação no Congresso. A previsão foi inserida — e posteriormente retirada — da MP do Preço de Transferência (1152/22) e constou em um projeto aprovado em maio, depois vetado pelo presidente Lula.
O artigo é visto por especialistas como uma resposta do setor a uma série de autuações recebidas por empresas que atuam na multiplicação de sementes. Essas companhias adquirem de grandes empresas como Syngenta e Bayer o direito de usar a tecnologia desenvolvida por elas, posteriormente produzindo sementes para uso pelos produtores rurais.
As autuações da Receita Federal vieram do fato de as sementeiras deduzirem integralmente o valor pago a título de royalties da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Para a Receita, a dedução estaria sujeita ao limite de 5% previsto no artigo 74 da Lei 3.470/58 e no artigo 12 da Lei 4.131/62.
Segundo Osli Barreto, superintendente executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Sementes de Soja (Abrass), o setor foi pego de surpresa com o entendimento. Ele defende que a legislação utilizada pela Receita não é adequada à operação das empresas que atuam com multiplicação de sementes. “[O valor pago às multinacionais] não é renda, é biotecnologia, nós apenas repassamos”, afirma.
Barreto diz que grande parte do valor de uma saca de sementes de soja corresponde à biotecnologia. O setor de multiplicadores de sementes, segundo ele, é composto por aproximadamente 200 empresas, de tamanhos variados.
Período ‘para trás’
Em relação ao limite de dedução dos royalties, o período “para frente” já está resolvido para as sementeiras, já que a nova legislação de preços de transferência (Lei 14.596/23) derrubou os dispositivos das Leis 3470/58 e 4.131/62 que traziam o limite de 5%.
Sobrou, assim, o período “para trás”, ou seja, as autuações que ainda estão em debate na esfera administrativa e que em breve chegarão ao Carf. Por esse motivo, o dispositivo sobre o tema no PL 2384 cita expressamente o artigo 106 do Código Tributário Nacional (CTN), que prevê que terá eficácia retroativa a lei que for “expressamente interpretativa”.
O artigo 11 do projeto prevê que a “exploração ou pelo uso de tecnologia de transgenia ou de licença de cultivares por terceiros” não está sujeita aos limites das Leis 3470/58 e 4.131/62. Na prática, caso aprovado, o dispositivo deixaria claro que, mesmo antes da vigência das novas regras de preço de transferência, não havia limite para a dedutibilidade dos royalties, o que poderia levar à derrubada das autuações fiscais relacionadas ao tema.
Quem acompanha a movimentação de projetos tributários no Congresso, porém, vai se lembrar de ter visto esse tema em outras ocasiões. Ele constou no PL 947/2022, aprovado em maio pelo Congresso e vetado em junho por Lula. Para o presidente, a proposta seria inconstitucional e contrária ao interesse público, pelo fato de seu impacto não estar dimensionado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023.
Em março, um dispositivo sobre a tributação das sementeiras foi incluído na MP do Preço de Transferência. A previsão, porém, foi vista como um “jabuti” por alguns parlamentares, sendo retirada antes da votação do texto final.
A inclusão do tema no PL do Carf fez parte de uma negociação entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e a Frente Parlamentar da Agropecuária para “destravar” a proposta, que é relevante para o governo pelo seu potencial arrecadatório. Nesta terça-feira (22), o relator do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), apresentou relatório mantendo o dispositivo relacionado às sementes. O projeto saiu de pauta com pedido de vista e deve retomar à análise dos parlamentares nesta quarta (23).
Não está claro, porém, se, em caso de aprovação do projeto com o texto que passou na Câmara a questão das sementes será mantida pelo presidente Lula. Isso porque os motivos que levaram ao veto do PL 947 permanecem, já que não há previsão relacionada ao tema na LDO de 2023. Além disso, a medida poderia implicar em renúncia de receita, indo na contramão da pretensão de Haddad.
Procurada para comentar o tema, a Receita Federal informou que “não se manifesta sobre estudos ou normas que não estejam publicadas”.