
“Não sei o que que aconteceu, mas eles me abriram antes que a anestesia aplicada fizesse efeito. Meu filho foi tirado de mim com uma extrema violência”, relatou Geslaine Aguetoni Maule, funcionária pública na Câmara Municipal de Alto Paraíso, em Rondônia. “Eu arrebentei os tecidos que estavam amarrando meus pulsos e como estava sem efeito de anestesia, encolhi as minhas pernas e precisei de duas enfermeiras para segurar os meus pés e outras duas para segurarem meus braços”.
Existem muitas histórias parecidas com a de Maule. Uma a cada quatro mulheres são vítimas de violência obstétrica, de acordo com o estudo Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado, realizado pela Fundação Perseu Abramo, em 2010.
Ao perceberem que pouquíssimas mulheres procuravam a Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso Sul para denunciar casos de violência durante o parto, três defensoras públicas e uma assistente social do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria (NUDEM) decidiram criar um projeto para ampliar a divulgação de informações sobre os direitos da gestante e sobre os mecanismos que elas dispõem para buscar a responsabilização de quem feri-los. O projeto “Capacitação e Informação no Combate a Violência Obstétrica” ganhou o 16° Prêmio Innovare, em 2019.
“Nós sabíamos da ocorrência frequente de casos e começamos a perceber que as mulheres que sofriam a violência obstétrica não vinham nos buscar aqui na Defensoria. Entendemos que isso acontece, não porque não existe a violência no estado, mas porque há falta de informação”, afirmou Thais Dominato, defensora pública e uma das autoras do projeto.
Como funciona o projeto
A prática premiada existe desde 2017. O grupo promove, tanto na capital Campo Grande quanto no interior do estado, encontros, rodas de conversas e workshops que informam as mulheres de seus direitos, além de abordar os tipos de violências que podem sofrer ou que sofreram sem saber. O projeto também foca na capacitação de órgãos da saúde e de assistência social.
A violência obstétrica, afirmou a defensora pública, consiste no tratamento desumanizado da mulher na gestação, parto, pós-parto ou aborto. Há diversos níveis deste tipo de violência. “Ela pode ocorrer pela utilização de procedimentos não mais indicados pelo Ministério da Saúde e, também com a tentativa de retirar a autonomia e protagonismo da mulher nesse momento, como violência verbal, física, psicológica e sexual”, explicou a defensora pública.
Antes de ser submetida a uma cesariana sem os efeitos da anestesia, Maule foi proibida pelo médico de levar acompanhantes para a sala de parto e teve de passar por todo o procedimento sozinha. Ela não sabia que ela tinha o direito de ter a presença de uma pessoa próxima, além da equipe médica.
“A mulher não pode ser privada de um direito garantido só porque o hospital não se adequou as normas”
Segundo os dados preliminares de pesquisa do Programa Rede Cegonha, que ouviu 12.465 mulheres entre fevereiro de 2012 a janeiro de 2013, apenas apenas 33,7% das mulheres informaram ter acompanhante no parto. Destas mulheres, 54,95% informaram que o serviço de saúde vetou a presença de um conhecido no local. Durante a pandemia da Covid-19, a questão se intensificou.
De acordo com Marina Ruzzi, advogada especialista em direitos da mulheres e LGBT, ainda é comum que médicos não permitam que a mulher tenha um acompanhante na hora do parto. “A mulher não pode ser privada de um direito garantido só porque o hospital não se adequou as normas”, defendeu Marina.
ALei 11.108/2005 prevê:
Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde – SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.
Thais Ferreira, especialista em políticas públicas e vereadora no Rio de Janeiro (PSOL), estava com 8 meses de gestação quando descobriu que o feto que ela gestava estava morto. Ela estava em um hospital particular, foi informada de que não havia espaço no local e que deveria ir para casa e tomar remédios expulsivos. Sem entender, Ferreira ligou para sua médica que informou que ela não precisava fazer isso, e a encaminhou para outro hospital. “A intenção era que eu tomasse um remédio para acelerar a expulsão do feto, e que eu entrasse em trabalho de parto em casa”, afirma a vereadora.
“Quando eu voltei da cesárea de emergência, estava em um leito comum do hospital, sem nenhuma informação no meu prontuário. Entrou um enfermeiro e levantou o meu lençol e falou: menina, por que você está toda suja? Você não sabe se limpar? E puxou minha sonda que estava instalada para fazer xixi”, acrescentou.
Dominato defendeu a importância da informação, e como isso pode fazer diferença na vida das mulheres. “É uma violência que foi sendo reproduzida durante as gerações e acabou sendo naturalizada. As mulheres não reconhecem aquela conduta como violenta. Quando sabemos dos nossos direitos, faz muita diferença. A mulher tem menos chance de ser lesada”, afirmou.
“Quando sabemos dos nossos direitos, faz muita diferença. A mulher tem menos chance de ser lesada”
A defensora pública relembrou uma passagem que marcou sua experiência no projeto: “Estávamos em uma roda de conversa e uma das mulheres levantou, deu alguns passos e desmaiou na nossa frente. Não era uma gestante, era uma técnica do Centro de Referência da Assistência Social, e ela comentou que, quando eu estava falando de violência obstétrica, ela se lembrou do que aconteceu com ela. Ela havia feito o parto sem anestesia, sem nenhum cuidado. É muito marcante, para a mulher, essa questão da violência obstétrica”.