
Na última terça-feira (6/9), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)condenou a Costa Rica pela violação dos direitos à liberdade de pensamento e de expressão dos jornalistas Ronald Moya Chacón e Freddy Parrales Chaves, responsabilizados civilmente, de forma desproporcional, pela publicação de uma reportagem com informações equivocadas. Para além do caso concreto, a decisão é relevante por apontar como o Judiciário deve tratar a liberdade de imprensa com maior deferência, de forma que não haja um efeito dissuasório na investigação e divulgação de informações de interesse público. Espera-se que estes apontamentos se espraiem para os países-membros da Corte, inclusive para o Brasil.
Os jornalistas haviam publicado uma reportagem no jornal costa-riquenho La Nación em que diziam que um delegado de polícia estava sendo investigado por facilitar o tráfico de bebidas. A informação, que depois se provou equivocada, havia sido fornecida pelo então ministro da Segurança Pública, Rogelio Ramos. Na verdade, o delegado estava sendo investigado por extorsão. Pelo erro, os jornalistas foram processados criminalmente — e absolvidos nesta esfera — e condenados civilmente a pagar ¢5 milhões, o equivalente a R$ 36 mil.
Ao julgar o caso, a Corte IDH anulou a condenação e determinou a reparação por dano imaterial aos jornalistas no valor de US$ 20 mil, o equivalente a R$ 103,7 mil, além do pagamento dos custos que eles tiveram com os processos. Além disso, a sentença e os votos trazem diversas ponderações a respeito do trabalho da imprensa, que devem balizar o Judiciário dos países signatários do Pacto de San José da Costa Rica.
“A lógica do sistema interamericano é gerar estabilidade para a região. Então todas as decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos têm por um dos objetivos gerar estabilidade democrática na região e também propagar a cultura do respeito aos direitos humanos fundamentais, dentre eles a liberdade de pensamento, que tem na liberdade jornalística uma de suas projeções”, avalia Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de Direitos Humanos e advogado atuante no Sistema Interamericano de Direitos Humanos em questões indígenas e de violência contra a mulher. “Embora a decisão diga respeito à Costa Rica, este é um precedente muito importante que passa a ser aplicável a qualquer outro país que tenha reconhecido a aplicação da Corte IDH. Não existe democracia sem liberdade jornalística”, comenta Bastos Pereira sobre a sentença.
O presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o uruguaio Ricardo C. Pérez Manrique, afirmou em seu voto que devem ser observadas: a proibição de censura prévia, a existência de responsabilidades ulteriores, a não convencionalidade da resposta criminal para proteger a honra de funcionários públicos; e, nos casos de responsabilidade direito civil, a necessidade de aplicá-la apenas em casos de dolo ou negligência extrema e de forma proporcional, a fim de evitar um efeito intimidador ou censório para os jornalistas.
Charlene Nagae, diretora-executiva do Instituto TornaVoz, que trabalha na defesa da liberdade de expressão, avalia que a decisão da Corte IDH “traz um reconhecimento bastante importante de que as condenações de pagamento de indenização também são causa de amedrondamento de jornalistas, o que também podem levar à autocensura”. O precedente, avalia Nagae, é importante para o cenário brasileiro em que autoridades e figuras públicas têm se utilizado de processo judiciais para intimidar jornalistas, jornais e até cidadãos.
No caso concreto, a Costa Rica argumentava que os jornalistas não checaram corretamente informações publicadas, ao não ouvir fontes como o Departamento de Imprensa do Poder Judiciário. Na decisão, os juízes ponderam haver o dever de o jornalista “verificar de forma razoável, embora não necessariamente exaustiva, os fatos que revela”. Mas, a tarefa de ouvir as fontes, diz o presidente da Corte, está “isenta de controle judicial no caso de informações de interesse público, provenientes de uma fonte oficial”. Ao considerar o argumento da Costa Rica, um magistrado estaria “assumindo ilegitimamente o papel de editor”.
Já o juiz brasileiro, Rodrigo Mudrovitsch, abordou a fundo os perigos do uso do Direito Penal em casos envolvendo a liberdade de expressão e de imprensa. “O Direito Penal não pode se prestar a sancionar qualquer tipo de lesão a direitos, porquanto se trata da espécie de sanção mais grave que pode ser imposta pelo Estado ao indivíduo. É dizer que a previsão de tipos penais não pode ignorar o caráter de ultima ratio do Direito Penal. Mais ainda, quando se trata da tutela de condutas relacionadas ao exercício da liberdade de expressão, como a atividade jornalística, e à divulgação de informações de interesse público, esta excepcionalidade ganha contornos de maior importância”, escreveu.
“Não raro e de forma especialmente preocupante, a tutela jurisdicional relativa a crimes contra honra é exercida por meio de ações penais de iniciativa privada, de ajuizamento amplamente discricionário pelo suposto ofendido”, lembra Mudrovitsch. “Com isso, torna-se muito mais fácil lançar mão de medidas penais para amedrontar, intimidar ou inibir manifestações de liberdade de expressão, mesmo que estas não resultem em condenação, ainda mais no contexto de reportagens de investigação jornalística de interesse público.”
Para o juiz brasileiro, “uma política criminal valorativamente informada pelos princípios advindos da Convenção Americana na esfera do direito à liberdade de expressão é aquela que restringe, quanto possível, o âmbito de incidência do Direito Penal sobre o exercício da atividade jornalística”.
Ademar Borges, professor do programa de doutorado em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), avalia que a decisão deixa mais clara a jurisprudência da Corte IDH, de que o jornalista tem que tomar as cautelas mínimas. “Não podemos confundir isso com o que o governo acha que o jornalista deveria ter feito. O que a Corte diz agora é que, desde que atue de boa-fé e faça o mínimo de apuração, a atividade jornalística é plenamente legítima e o Direito Penal não pode ser utilizado como forma de intimidação”, diz Borges. “O voto do juiz brasileiro é importantíssimo porque deixa claro, de uma vez por todas, que só o fato de a jurisprudência interna fazer uso desses instrumentos, eventualmente absolvendo os denunciados, coloca em risco a liberdade da atividade jornalística.”
A transcendência do julgado da Corte IDH para outros países faz com que, no Brasil, os jornalistas passem a gozar, a partir desse precedente, na visão de Borges, de um grau de proteção superior ao anterior. “Daqui para frente, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça terão que lidar com esse precedente. Mesmo que seja para afastá-lo”, pondera.
Em janeiro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro “a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas”.
A observância da decisão da Corte IDH no país é importante no atual contexto político, avalia Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP. “No Brasil não existe uma cultura robusta de proteção à liberdade de expressão em geral, e em especifico da liberdade de imprensa. Existe um movimento relevante de censura judicial à atividade jornalística que se acentuou com a polarização eleitoral. Estamos vendo uma profissionalização da intimidação judicial como uma forma de gerar autocensura na atividade jornalística”, avalia Glezer. “A decisão da Corte IDH é um precedente importante para que a atividade jornalística de boa-fé, munida dos esforços razoáveis de apuração e que faz as descrições de fatos, seja protegida”.
André Marsiglia, advogado especialista em liberdade de expressão e consultor jurídico da Repórteres sem Fronteiras (RSF), concorda. Para ele, vivemos uma época de criminalização da atividade jornalística no país. “Os jornalistas são vistos, a priori, como criminosos, como se eles merecessem punições penais em razão daquilo que pensam ou que publicam. Isso é absolutamente incompatível com a democracia”, afirma Marsiglia.
O advogado avalia que o caso julgado pela Corte IDH também é relevante porque a Costa Rica não é um país que tenha cometido grandes violações à liberdade de expressão e tampouco se trata de um caso midiático, de repercussão internacional imensa. “Isso pode servir de aviso aos nossos jornalistas e aos nossos tribunais de que também casos de menor destaque podem ser levados ao sistema interamericano e ser julgados”.