

A pandemia de Covid-19 destroçou milhões de vidas e afetou demasiadamente a economia. Ainda assim, as respostas da sociedade à doença seriam diferentes caso a emergência de saúde pública tivesse eclodido poucas décadas antes. A começar pela conectividade. Compras online, dependência de serviços digitais para entretenimento e trabalho remoto aumentaram em 20% o uso de internet globalmente, segundo cálculos do setor.
No Brasil, os primeiros meses de quarentena, ainda no ano passado, registraram uma demanda pelo menos 40% maior no uso da internet, calculou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Assim, mais do que uma estratégia, a transformação digital se firmou como condição de sobrevivência para os negócios na pandemia. E para os consumidores, a prioridade passou o que funciona melhor no digital, em caminho que parece sem volta.
No pós-pandemia, o retorno do enfoque offline deve se misturar com o online. Essa transição consolida um movimento da última década, que ficou conhecido como nova economia. Grosso modo, se trata da priorização por serviços personalizados, em vez de produtos massificados; valorização da experiência do usuário; e digitalização para se adaptar ao mercado rapidamente.
Em relação a esse último ponto, nada colocou mais à prova os negócios engajados nessa perspectiva do que a demanda por serviços plenamente conectados – da noite para o dia com a chegada da pandemia a cada região. Além disso, as crises são frequentemente chances de crescimento no escopo da nova economia.
“A inovação explora problemas que não se sabe como resolver. Quando uma nova empresa disruptiva nasce, ela atua dentro de certa estrutura de mercado até afetá-la, gerando respostas dos grandes players e até dos reguladores”, explica Guilherme Fowler, especialista em economia digital e professor do Insper. Para os negócios que observam falhas de mercado para inovar, o caos pode gerar novas tecnologias e serviços que se espalham e são replicadas.
No “caos” atual, essa oferta de soluções atende à necessidade de digitalização acentuada pelo momento de distanciamento, mas também a demanda de acesso a serviços que – dentro do que é oferecido tradicionalmente – não atingem parcelas relevantes da população brasileira. Com a crise econômica, essa lacuna se torna ainda mais relevante.
Empresas guiadas pela nova economia souberam construir modelos de negócios para ocupar lacunas que vão desde dificuldades de acesso à crédito e exclusão do sistema bancário, passando pela burocracia da locação de imóveis e dificuldades para obter atendimento de saúde. Assim, a perspectiva é crescer enquanto negócio ao mesmo tempo em que promove uma democratização de serviços.
Um levantamento do Sebrae em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que, em um ano, a participação dos pequenos no comércio eletrônico passou de 59% para 67% – mulheres e jovens são os que mais atuam dessa forma. Apesar do incremento, vendas online não chegam nem a metade do faturamento nesses casos. Apenas três em cada dez negócios tiraram daí a maior parte de sua receita no último ano.
Assim, há uma parcela relevante de empresas que poderiam se beneficiar das soluções da nova economia e que ainda estão de fora dela. Há espaço tanto para ampliar a taxa de adesão ao e-commerce, ampliar o perfil de empreendedores atuantes nessas plataformas. Aqui, se poderia pensar em marketplaces, serviços de entrega rápida e delivery, que se fortaleceram na pandemia.
Mesmo após a reabertura da economia em diferentes partes do país, o crescimento não cessou, o que indicaria tendência sobre o consumo no pós-pandemia. No ano passado, o Mercado Livre, maior marketplace atuante no Brasil, verificou aumento de 41% em novos compradores, além de mais vendas em todos os setores e alcançou a marca de 12 milhões de vendedores na plataforma – boa parte deles pequenos negócios que nunca haviam tido uma loja digital.
A empresa percebeu também aumento no interesse por entregas mais rápidas, com os vendedores capazes disso saindo em vantagem. Com isso, o ano foi encerrado com sete em cada dez entregas sendo feitas em até um dia, no que foi uma das enormes apostas da empresa para crescer na pandemia. Apenas no segundo semestre, as entregas pela logística da empresa mais do que dobraram.
Essa necessidade de consumidores por entregas rápidas, além da comodidade de receber em casa itens antes acessíveis apenas no endereço físico (como um prato do seu restaurante favorito), somada a urgência dos negócios pequenos continuarem operando impulsionaram as empresas de delivery no período.
As entregas via delivery se tornaram quase obrigatórias no setor alimentício: 49% desses restaurantes entregavam antes da pandemia, enquanto em dezembro passado essa já era realidade para 81%, segundo levantou o Instituto Locomotiva com a VR Alimentos. Entre os que criaram novos canais de venda, o bom e velho telefonema foi o meio mais usado, mas 39% das empresas entraram para os aplicativos.
A primeira conta na pandemia é digital
No ano passado, pela primeira vez, a parcela de downloads de aplicativos de bancos nascidos como digitais ultrapassou a de instituições tradicionais. Essas novas empresas tiveram fatia de 52%; em 2019, era o contrário, de acordo com levantamento do UBS Evidence Lab, braço do banco de investimento para pesquisa com dados.
Embora a divisão tenha sido praticamente igualitária, ela sinaliza uma mudança que tende a ser relevante: a disposição em conhecer serviços que não têm presença física e até abrir uma conta diretamente online. O levantamento do UBS estima que existam 60 milhões de contas digitais abertas, excluindo a modalidade digital criada pela Caixa para depósito automático do auxílio emergencial e outros repasses.
Inclusive, a necessidade de receber os depósitos do governo foi um dos principais motivos para que o número de brasileiros que não possuem conta em bancos e fintechs diminuísse 73% após a concessão do benefício, segundo estudo da consultoria Americas Market Intelligence com a Mastercard feita entre junho e agosto de 2020. Somado a isso, saques perderam espeço para transações digitais.
Em maio do ano passado, menos de 5% das transações do auxílio emergencial eram feitas digitalmente; em agosto, representavam 63%. Além disso, no começo, 35% das operações eram saques, que depois caíram para 15%. A pesquisa entende que o empurrão se deveu à proibição a transferência ou saque da conta nos 30 dias subsequentes. Assim, uma população sem conta em banco foi forçada a entrar direto no digital.
Esse processo ainda é engrossado pelas reformulações criadas pelo Banco Central para o sistema financeiro. Dois meses após o lançamento do Pix, modalidade de pagamento instantâneo e gratuito para pessoas físicas, em janeiro deste ano, 56 milhões de pessoas registraram chaves para usar a ferramenta. Pensando na população maior de 14 anos, 35% ativou a ferramenta no curto período.
A adesão – maior entre pessoas físicas, responsáveis por 86% das transferências via Pix naqueles primeiros meses –, somada à entrada de novas parcelas da população no sistema financeiro na pandemia, foi aproveitada por instituições focadas no digital. Entre as fintechs que se aceleraram nesse contexto, caso significativo é o do Picpay, que se tornou o maior aplicativo de pagamentos do Brasil, com mais de 50 milhões de usuários.
“Facilitamos transações entre pessoas, similar ao que o Pix faz hoje, desde 2012. Nosso foco agora é chegar ao celular de todos os brasileiros”, diz Anderson Chamon, vice-presidente de produtos e tecnologia do Picpay, em declaração por e-mail. “Serviços financeiros básicos são serviços essenciais. E a bancarização nos trouxe diversas oportunidades. Nosso ritmo de aquisição de novos usuários aumentou, tanto do ponto de vista dos clientes quanto das empresas”, afirma.
Apesar desse avanço do setor, ainda há 34 milhões de brasileiros sem conta bancária ou que a usam pouco, conforme levantamento do Instituto Locomotiva com dados de janeiro passado. Isso não significa que essa população não movimente dinheiro. Na verdade, o volume de recursos movido por ela, de R$ 347 bilhões, corresponde a 8% da massa de rendas no país.
Entre os que não têm conta, a maior parte é de mulheres, majoritariamente do interior, das classes D e E, com formação até o ensino fundamental e com 18 a 29 anos. Quase a metade está fora por não querer ou entender não precisar se bancarizar. É possível intuir que essa resistência poderia ser quebrada justamente por instituições capazes de atingir público pouco propenso a buscar por uma agência bancária.
Retomada dos pequenos negócios
A relutância em buscar uma instituição financeira é amplificada quando se trata de buscar crédito. Não sem justificativa quando se verifica que o endividamento das famílias bateu novo recorde em março, quando atingiu 58% da renda acumulada no ano anterior, segundo divulgado pelo Banco Central em junho. O aumento foi relacionado com a expansão do crédito bancário e com a queda da massa salarial durante a pandemia.
Com as perspectivas de pós-pandemia se tornando mais palpáveis, a tomada de crédito é demanda para a sobrevivência ou reconstrução de negócios. Os pequenos, como era de se esperar, foram os mais afetados. De modo geral, microempreendedores individuais (MEI) registram a maior taxa de encerramento em até cinco anos, segundo pesquisa do Sebrae divulgada em junho: 29% delas fecham neste período. Entre microempresas e empresas de pequeno porte, as taxas são de 22% e 17%, respectivamente.
Entre os empreendimentos que não tiveram fôlego financeiro para continuar, se destacam os atuantes no comércio e serviços, com taxa de mortalidade em torno de 30% nos dois casos – para se ter ideia, isso é o dobro da apresentada na indústria extrativista.
No último ano, evidentemente, um dos fatores a decretar a morte de algumas delas foi a pandemia. Mais de 40% dos entrevistados a citaram como causa do encerramento, mas cabe observar que quase um quarto deles culpou a falta de capital de giro e um terço acredita que o acesso a crédito poderia ter evitado o fim. Porém, apenas 7% solicitaram e conseguiram obter crédito com uma instituição financeira.
É nessa brecha que apostam fintechs como a Creditas, que começou em 2012 como marketplace de produtos financeiros e cinco anos depois passou a atuar na concessão de crédito com garantia. Hoje, é a principal plataforma online com esse tipo de serviço. Entre os principais produtos está a obtenção de crédito cuja garantia é um imóvel – o que permite oferecer taxas mais baratas e parcelas menores em prazos de até 240 meses.
Evidentemente, o mecanismo é visto com desconfiança especialmente por pessoas físicas, que temem perda de patrimônio. No caso dos tomadores que são negócios, a percepção sobre o crédito como investimento está mais disseminado. “O crescimento dos empréstimos para empresas têm sido mais forte que a média geral e nosso objetivo é que a proporção da nossa carteira aumente nesse sentido, especialmente atendendo pequenos negócios”, diz Tete Fornea, vice-presidente de home equity da Creditas.
Com esse objetivo, passou a liberar crédito entre R$ 30 mil e R$ 3 milhões para MEIs e oferece, entre outros facilitadores, o início do pagamento seis meses após a concessão. Além da busca por taxas mais acessíveis, a opção pelas fintechs por micro e pequenos negócios pode acontecer após negativa em análise para outros tipos de dívida. “Observamos a viabilidade do crédito como o conjunto entre perspectiva do negócio e preservação da pessoa no caso de empresas pequenas em o dono e ela se misturam”, afirma ela.
Para os negócios que não precisaram fechar e ainda lutam para conseguir atravessar a pandemia, uma boa notícia é que a reposta positiva a pedidos de crédito tem crescido nos últimos meses. Entre abril de 2020 e maio deste ano, aumentou em quase quatro vezes o número de empreendedores que obtiveram empréstimo. Com isso, metade teve sucesso, considerando os 7,8 mil entrevistados pelo Sebrae em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).