

Acionar a Justiça para questionar a execução – ou o descumprimento – de um serviço no Brasil só será possível com provas de que as alternativas de acordo entre consumidor e companhia foram esgotadas sem sucesso. Sem isso, o caso não poderia ir adiante, diferentemente do que acontece hoje, em que não há a exigência de tentativa prévia de resolução do conflito.
Essa possibilidade é discutida há dois anos na Câmara dos Deputados e já recebeu parecer favorável do relator na Comissão de Defesa do Consumidor, no Projeto de Lei 533/2019. O projeto é justificado como uma tentativa de desafogar o Judiciário brasileiro – os casos de consumo são os mais demandados nos tribunais estaduais. Setores que concentram a maior parte das reclamações, como de bancos, telecomunicações e linhas aéreas, estão entre os principais interessados na mudança. Entretanto, a medida é criticada por associações que defendem consumidores e especialistas em Direito do Consumidor.
A controvérsia não é exclusividade brasileira. Legisladores de diferentes países também se depararam com ambos os polos e tomaram caminhos diversos nos últimos anos. Mas, de modo geral, nos Estados ocidentais com economias capitalistas, como o brasileiro, há alguns pontos em comum que norteiam as relações entre consumidores e empresas. E a alternativa pela obrigação de comunicação prévia ou busca por um acordo, definitivamente, não é consenso.
Apesar das diferenças e especificidades – ou mesmo idiossincrasias – de cada legislação, há certos princípios, seguidos em maior ou menor grau, que ajudam a entender os conflitos envolvidos. Em 1985, a assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou pela primeira vez as suas diretrizes para proteção do consumidor, que deveriam ser adotadas por todos os países membros em “leis, regras e regulações”. O documento foi atualizado em 2015 para incluir transformações do e-commerce e aumento das transações internacionais.
Pelo trato, fica a cargo sobretudo das empresas e Estados assegurar a proteção dos interesses de consumidores, especialmente os “vulneráveis e em desvantagem” – o pressuposto é que são eles o elo mais frágil, e não as companhias. As diretivas sobre resolução de conflitos preveem que devem ser desenvolvidos “mecanismos justos, imparciais, transparentes para endereçar queixas de consumidores por vias administrativas, judicial e alternativas de solução de disputas”.
Embora não se fale em priorizar um ou outro meio, o guia não prescreve explicitamente a necessidade de garantir o acesso de consumidores à Justiça, o que deixa margem para que a adoção de meios extrajudiciais se torne predominante e até mandatória.
Como o acesso à Justiça é considerado um direito fundamental, há certa resistência em adotar a interpretação de que é imprescindível seguir um roteiro alternativo para se abrir um processo. “Diferentes países do bloco europeu, como Itália e Grécia, já tentaram ou discutiram instituir esse tipo de regra, mas ele é muito controverso com a garantia legal de acesso a um juiz. Por isso, acabam não vingando”, explica Stefaan Voet, professor de Processo Civil na Universidade de Leuven, na Bélgica, especialista em resolução de conflitos.
Diferentes abordagens na realidade europeia
Porém, ao menos em teoria, o dispositivo não é proibido. E há marco legal que o autoriza. A pedido do tribunal de Verona, na Itália, a Corte de Justiça da União Europeia (CJEU), que observa se as leis do bloco estão sendo aplicadas de forma compatível nos diferentes países, analisou um caso opondo dois consumidores a um banco italiano, em 2017. Os clientes haviam processado a instituição de crédito após serem cobrados por uma dívida beirando € 1 milhão, mas o tribunal local entendeu que não poderia ir adiante com o processo, pois não houvera uma mediação antes, como a lei italiana determina.
A corte europeia aproveitou a situação para esclarecer em quais condições a exigência é válida. Apontou que uma legislação nacional poderia prever ter havido uma mediação como requisito para admissão de processo judicial, “na medida em que essa requisição não impeça o direito de as partes de exercer o acesso ao Judiciário”. No caso da legislação italiana, os consumidores podem ser acompanhados por um advogado na mediação e rejeitá-la desde que apresentadas “razões válidas”.
Essa foi a interpretação dada, entre outros normativos, à Diretiva 11/2013 da União Europeia, que trata de alternativas de resolução de conflitos (ADR) entre empresas e consumidores. Ela já previa que esses procedimentos, ainda que mandatórios, não poderiam impedir a ida à Justiça quando a disputa não fosse solucionada. Além disso, essas alternativas não poderiam ser concebidas para substituir os procedimentos judiciais e não devem privar a busca por reparação nos tribunais.
Embora exista essa abertura, há uma série de exigências para que um método alternativo ao Judiciário seja admitido – e que podem contribuir para a discussão brasileira. Em 2010, analisando outro caso semelhante, de consumidores e uma empresa de telecomunicações, a partir da Diretiva 52/2008, sobre mediação, a corte europeia sistematizou as condições que a obrigação pela alternativa extrajudicial deveria respeitar.
Assim, seriam: o procedimento não deve resultar em decisão vinculante (ou definitiva); não pode gerar atrasos; enquanto estiver acontecendo, deve suspender o prazo de prescrição das reclamações na Justiça; precisa ter custos muito limitados ou ser gratuito; o ambiente digital não pode ser o único meio de acesso; medidas provisórias devem continuar sendo possíveis mesmo em circunstâncias excepcionais.
Em certa medida, esses itens podem ser lidos como um resumo do que preveem diferentes regras europeias sobre o tema e também estão de acordo com princípios da ONU ao tratar de consumo. “O principal é que, se você pretende forçar consumidores a buscar alternativas ao Judiciário, elas precisam ter o mesmo alto nível de qualidade. Elas devem ter confiança da sociedade de que os procedimentos são justos”, diz Voet.
Na União Europeia, embora as ADRs tenham balizas válidas para todo o bloco, elas são usadas em diferentes níveis. Podem até não ser mandatórias, mas em certos casos é tão difícil optar pela via tradicional que não resta muita escolha. Em setembro, a diretiva que trata do tema será rediscutida, o que acontece pela segunda vez. “Certamente, um dos pontos de maior interesse é decidir se elas serão, obrigatoriamente, o meio principal para essas disputas”, aposta o professor.
Em situação semelhante à brasileira, na Bélgica, onde fica sediado o Parlamento Europeu, as alternativas extrajudiciais são uma opção estabelecida para resolução de conflitos, mas a busca pelo Judiciário é igualmente viável. Uma ferramenta para esses casos é a instituição conhecida como Justiça da paz, para processos avaliados em até € 5 mil e em que a abertura custa cerca de € 50 – no Brasil, o similar são os Juizados Especiais Cíveis, que não traz custos ao cidadão. Também é permitido que associações abram processos coletivos com reclamações de consumidores.
Em novembro passado, o Parlamentou Europeu aprovou como regra geral para o bloco a possibilidade de que organizações busquem a proibição ou compensação por infrações cometidas por empresas em class actions. Os membros do bloco têm até o fim do próximo ano para adaptar suas legislações.
A lei faz parte do que vem sendo chamado de New Deal dos consumidores europeus, um marco legal para equalizar diferentes tratamentos. Ele chega em resposta a, como o próprio congresso justificou, “uma série de escândalos recentes de violações por multinacionais” – uma referência é ao caso Dieselgate, em que a Volkswagen admitiu que, em 2015, instalou softwares para dissimular emissão de gases de efeito estufa e passar em testes de poluentes.
Em 2018, também por causa desse escândalo, que afetou 2,4 milhões de veículos comprados no país, o parlamento alemão aprovou uma lei para permitir processos coletivos. Com desfecho no ano passado em favor dos cidadãos, o caso foi a primeira class action de consumidores na Alemanha, organizada pela federação de organizações de consumo locais. No julgamento, os 260 mil consumidores obtiveram € 830 milhões em compensação – nos Estados Unidos, em relação ao mesmo caso, a indenização estabelecida no tribunal foi bem maior, de US$ 15 bilhões.
É significativo que esse tenha sido o primeiro processo do tipo na Alemanha, já que uma das principais razões para o consumidores do país buscarem a Justiça é para reparar questões envolvendo seus carros. “É algo muito cultural e faz com que seja comum alemães terem seguro para custos legais, o que permite a abertura de um eventual processo”, explica o professor Peter Rott, especialista em Direito Privado Europeu e Direito do Consumidor, da Universidade de Oldenburg, na Alemanha.
Outra razão, mais generalizada, para que esse tipo de recurso seja pago anualmente por cidadãos locais é que não há número razoável de alternativas. “A indústria alemã aceita muito mal as reclamações de consumidores, por isso é comum haver processos sobre isso. Também não é inviável obter acompanhamento de advogados, porque os custos são proporcionais com o montante em discussão na Justiça”, diz ele.
Porém, a abertura de um processo pode ter seus reveses: se o consumidor se queixa de uma empresa judicialmente e, logo após a notificação, a empresa oferece uma solução para o problema, o cidadão deverá arcar com todos os custos relacionados à ação judicial. “Isso inibe a ida aos tribunais, porque parece muito estúpido correr esse risco”, afirma Peter. No caso alemão – em polo oposto ao de outros companheiros de bloco como a Bélgica –, não há obrigação de serem disponibilizadas ADRs para os consumidores. Alguns setores, como de linhas aéreas, adotam.
Quando as alternativas são a norma
“Geralmente, países com acesso à Justiça menos efetivo têm ferramentas alternativas mais robustas e também comumente usadas. É o caso de Portugal, Espanha e Reino Unido”, adiciona o professor. Nesse sentido, a situação britânica oferece um tratamento com foco total em ADRs. Em grande parte dos setores regulados, como os de trens, bancos e seguros, há obrigação de haver um esquema desse tipo disponível. Entretanto, antes de acessar um deles é preciso tentar contato direto com a companhia, que tem prazo para resolver ou informar quando não pretende.
Por princípio, os órgãos de ADR de cada setor precisam ser independentes e geralmente tem valores fixados para eventual indenização – nesse caso, não há possibilidade de compensação por inconveniência, e sim por custos materiais, por exemplo. Resolver as disputas extrajudicialmente se torna a opção mais comum também pela facilidade, já que é possível fazer quase tudo online e de graça. Caso não se chegue a um acordo satisfatório nessa instância, se pode buscar a Justiça.
Porém, tradicionalmente, devido aos sistemas jurídicos locais, os juízes são menos intervencionistas, as cortes não são acessíveis financeiramente e uma minoria de casos vão a julgamento. Há tribunais de pequenas causas na Inglaterra e no País de Gales, mas eles são mais usados por empresas contra consumidores, na cobrança de dívidas. “O tribunal de pequenas causas é parcialmente disponível online e um dos mecanismos mais bem aceitos é oferecer mediação gratuita por telefone logo no começo”, explica Pablo Cortés, professor Universidade de Leicester, no Reino Unido, que auxiliou a Comissão Europeia na criação da diretiva sobre ADR.
A tradição jurídica britânica, que é focada também na liberdade das partes para firmar contratos, sem intervenção judicial, se estende também para os Estados Unidos. Assim, se tornou disseminada a imposição de cláusulas de arbitragem em contratos de consumo. Na prática, significa que disputas devem ser resolvidas apenas nessas entidades privadas, que seguem a lei americana, mas onde não há júri e os custos do árbitro são divididos entre as partes. A questão que tem sido discutida na última década por lá é, em que medida, há de fato consenso nos contratos entre pessoas e empresas.
Entre 100 grandes empresas americanas, 81 contam com políticas que barram consumidores de ir ao Judiciário, segundo estudo publicado na revista científica University of California Davis Law Review em 2019. Isso quer dizer que clientes não poderiam processá-las fora da arbitragem nem mesmo por fraude, discriminação ou assédio. Empresas como Amazon, Apple e Walmart estão entre as que contam com o dispositivo. Além disso, contra 78 delas também não é possível mover class actions, apenas queixas individuais.
“A maioria das pessoas não conhece essa cláusula ao firmar uma relação de consumo e ela é problemática porque, além de impor um custo ao reclamar, não é coerente com as ideias de democracia e liberdade defendidas pelos americanos, pelas quais todos deveriam ter acesso livre a um juiz”, afirma o autor do estudo, Imri Szalai, professor de justiça social da Loyola Universidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos.
Para ele, o mecanismo revela certa desconfiança sobre o Judiciário. “A arbitragem aumentou em momentos de sobrecarga do Judiciário: na década de 1920, por conta da ‘lei seca’, e a partir de 1980, após um período de fortalecimento dos direitos do consumidor. Mas esse tipo de obrigação, que enfraquece do sistema de Justiça, precisa ser lido com extrema preocupação em qualquer país”, diz ele. Chegou a ser introduzido no Congresso americano, em 2017, um projeto de lei proibindo a cláusula em relações de consumo, trabalho ou direitos civis, mas a proposta não chegou a ir adiante.
O modelo, usado de forma generalizada, preocupa ainda pela falta de transparência quanto à uniformidade das decisões. “Isso é contrário aos princípios da Justiça americana, construída a partir de precedentes, que podem mudar conforme novos casos são analisados. Árbitros decidem apenas o caso em questão, não existindo evolução, então é possível que situações semelhantes tenham entendimentos diversos, que são desconhecidos por serem secretos”, diz Richard Alderman, diretor do Centro de Direito do Consumidor na Universidade de Houston, nos Estados Unidos.
Talvez o caso americano de arbitragem em relações de consumo seja o mais extremo quando se fala em medidas extrajudiciais para soluções de conflito, mas expõe as últimas consequências de um modelo distinto do brasileiro. Não está em debate por aqui a determinação contratual. Inclusive, o Código de Defesa do Consumidor foi atualizado no dia 1º de julho para vedar a possibilidade: agora, o artigo 51 estabelece como inválidos contratos que “condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário”.
Retrocesso de direitos
Além da polêmica sobre como o pré-requisito de meios extrajudiciais para um processo judicial conviveria com a garantia de acesso à Justiça, há ainda outros debates em torno de fundamentos internacionais e que uma mudança legislativa brasileira precisaria conciliar.
É o caso da ideia de progressividade e não regressão acordada pelo Mercosul, em resolução de 2019, como princípio norteador das legislações de defesa do consumidor. “Poderíamos retroceder, já que o CDC menciona expressamente o direito à facilitação da defesa de seus direitos e o novo requisito poderia ser uma barreira”, diz Claudia Lima Marques, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Além do Brasil, o bloco é composto por Argentina, Paraguai e Uruguai, além da suspensa Venezuela. O Brasil foi pioneiro em adotar uma legislação específica para tratar de defesa do consumidor, em 1990, por isso muitos dos aspectos do CDC são refletidos nesses países, em que também há o princípio de o indivíduo ser considerado a parte mais vulnerável da relação. “Essa perspectiva está presente na maior parte dos países latinos e também nos europeus, o que torna o Código brasileiro bem aceito”, diz Dante Ponte de Brito, professor da Universidade Federal do Piauí.
Analisando legislações de 17 países latinos para estabelecer índice de maior a menor proteção aos direitos do consumidor, Brasil, México e Costa Rica aparecem entre os que preservam mais mecanismos, conforme estudo publicado na revista Opinião Jurídica em 2018. Na maior parte dos países, o grau é considerado elevado. O desafio é como garantir os direitos expressos no papel ao mesmo tempo em que se promova um ambiente de negócios pujante.