

A Justiça de Santa Catarina reformou decisão que proibia a oferta de serviços da Buser, startup que conecta empresas de fretamento e consumidores, e das próprias empresas de transporte que se utilizam da plataforma para vender viagens. O entendimento é de que o estado não detém o monopólio do serviço de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros e que as atividades em questão são do âmbito privado.
O juiz Laudenir Fernando Petroncini, da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis, afirmou que, enquanto o serviço público de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros deve ser planejado, fiscalizado e controlado pela administração indireta do Poder Executivo, com execução podendo ser delegada a empresas particulares por meio de licitação, o serviço privado, de outro lado, independe de licitação.
“Basta que o interessado demonstre ao estado o cumprimento de determinados requisitos, que na espécie são aqueles estabelecidos na legislação mencionada”, disse, na decisão. Ele afirmou, ainda, que assim como o Estado não tem o monopólio sobre o serviço, também não o detêm as empresas tradicionais, representadas pelo sindicato que ajuizou a ação contrária à Buser.
Além disso, pontuou que “a atividade exercida pela Buser Brasil Tecnologia Ltda, qual seja, de comercializar em sua plataforma viagens intermunicipais para grupos de pessoas, na modalidade de fretamento eventual ou contínuo, está inserida no âmbito privado”
Portanto, ainda que a própria ação ressalte semelhanças entre as duas modalidades, também indica outras características do serviço da Buser que não se apresentam no serviço público, como a eventualidade do serviço, ou seja, não há garantia, mas apenas uma probabilidade de realização da viagem; a variação dos preços de acordo com a adesão à viagem — o que sugere, inclusive, que não se trata de passagem individual, mas de rateio do valor do frete da viagem —; e a não utilização de terminais rodoviários destinados à prestação de serviço de transporte rodoviário regular de passageiros.
“Além disso, a exigência constitucional, de que o serviço seja prestado pelo Estado a fim de que seja garantida a universalidade do serviço e a modicidade das tarifas, não impede, quando não for estabelecido o monopólio, que o serviço também seja prestado pela iniciativa privada”, enfatizou Petroncini.
Quanto ao pedido de que o estado fiscalizasse a Buser e as empresas de transporte que fazem uso da plataforma, o magistrado afirmou que “a atividade fiscalizatória do Estado deve ser exercida levando em conta o tipo de licença para transporte obtida pela empresa fiscalizada, face à natureza do serviço que esteja sendo efetivamente prestado”.
Circuito aberto
O processo foi aberto antes da edição do Decreto Estadual n° 1.342/2021, que entrou em vigor em agosto de 2021. O texto trouxe mudanças relevantes para o setor no estado, derrubando a polêmica norma do circuito fechado. A Buser, portanto, informou o surgimento de fato novo e pediu a revogação da decisão anterior, que a impedia de intermediar empresas de fretamento e passageiros no estado catarinense.
A decisão anterior, que havia suspendido as atividades da Buser em Santa Catarina, tinha como fundamento a Lei Estadual 5.684, de 1980, e o Decreto Estadual n° 12.601, do mesmo ano. Deste segundo texto legal, foram invocadas as disposições que tratavam do serviço de fretamento e por meio do qual se entendeu que o serviço da Buser não se enquadrava nessa modalidade.
Mas, com a publicação do Decreto Estadual 1.342/2021, que regulamentou os serviços privados de transporte intermunicipal de passageiros no regime de fretamento, ficaram revogados, expressamente, os trechos que embasaram a decisão judicial: o inciso XLVII do art. 3° e os arts. 112 a 122.
O decreto também estabeleceu que o serviço de fretamento, contínuo ou eventual, não poderia implicar no estabelecimento de serviço de transporte público regular, vedando-lhe algumas condutas. Em suma, a empresa que tiver licença para o fretamento não poderá vender reservas após o início da viagem, captar ou desembarcar passageiros no itinerário quando não façam parte da lista de passageiros preenchida antes do início da viagem, usar, para embarque e desembarque, os terminais rodoviários do transporte rodoviário regular de passageiros ou executar serviço de transporte diferente daquele para o qual obteve licença.
Marco para o setor
Luciano Fornasa, diretor da Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos (Abrafrec) no Sul, classifica essa decisão como uma mudança de paradigma importante “É um divisor de águas. Santa Catarina é um dos estados que andou na frente com essa liberação do circuito fechado dentro do estado, tornando-se referência”, diz.
A chamada norma do circuito fechado determina que uma empresa fica obrigada a ir e voltar com o mesmo grupo transportado para o local de origem, com baixíssima flexibilidade, tornando o frete mais caro em virtude da ociosidade da frota e do motorista, e teoricamente compensada pelo valor do serviço repassado ao grupo transportado.
A regra, que data de 1998, instituída por decreto presidencial e, em 2015, replicada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) por meio de resolução, foi apontada como anticoncorrencial por órgão do Ministério da Economia, em parecer de 31 de janeiro deste ano. O documento recomenda a revogação de ambas as normas.
A regra de circuito fechado determina que a empresa de fretamento viaje com, obrigatoriamente, os mesmos passageiros nos trajetos de origem e destino (ida e volta), na mesma hora e data da viagem, conforme programação apresentada à ANTT. Essa regra tem o potencial de criar uma reserva de mercado artificial para o segmento, já que é incompatível com as plataformas digitais que ofertam serviços de transporte de passageiros na modalidade de fretamento colaborativo.
Fornasa explica que antes mesmo da edição do decreto estadual do ano passado ou do surgimento de plataformas como a Buser, o estado já trabalhava na base do circuito aberto. Isso se deu depois de pressão do setor. “Abriu a partir do momento que houve a necessidade. Era um problema para as viagens até o aeroporto de Florianópolis, por exemplo, ou para levar o pessoal para Chapecó. Com a lista fechada, eu voltava com o ônibus vazio. Para o turismo a mudança era importante”, detalhou.
Mas, segundo ele, com a chegada das plataformas digitais no mercado, as empresas tradicionais tentaram, no estado, retomar a regra do circuito fechado. “A chegada dessas plataformas foi um marco para o setor, porque nos ajudou a nos desenvolver, deu oportunidade para várias empresas, que estão investindo mais e estão acreditando na jurisprudência que está se formando”, explicou o diretor da entidade.
Entenda o caso
No caso em questão, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros no Estado de Santa Catarina (Setpesc) ajuizou a ação contra a Agência de Regulação de Serviços Públicos de Santa Catarina (Aresc), o estado de Santa Catarina, a Lucretur Agência de Viagens e Turismo e a Buser.
Os pedidos foram para que fosse reconhecida e declarada a ilegalidade do modelo de serviço prestado pela Buser; que a empresa, a Lucretur e quaisquer outras parceiras fossem obrigadas a deixar de prestar os serviços e o estado e a Aresc fossem condenados a fiscalizar adequadamente o serviço público de transporte regular intermunicipal de passageiros.
O pedido de liminar incluía, ainda, o impedimento de divulgar os serviços, além de comercializar e realizar as atividades. O argumento era de que a Buser faz o serviço público de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros – o que, como dito acima, foi afastado pela decisão judicial – , já que disponibiliza opções de viagem com itinerários, horários e pontos de embarque e desembarque preestabelecidos, além de cobrar tarifa individual, por passageiro, para a viagem. Tudo isso sem outorga do estado de Santa Catarina para esse fim, o que tornaria ilegal o serviço ofertado.
Outro ponto levantado foi de que as viagens ofertadas pela Buser custam até 60% a menos que as passagens compradas em rodoviárias. O preço mais barato, segundo as empresas tradicionais, configuraria concorrência desleal, argumento que não para em pé.
O pedido de tutela de urgência chegou a ser deferido em parte para determinar que as requeridas Buser e a Lucretur se abstivessem de divulgar, comercializar e realizar as atividades de transporte rodoviário intermunicipal de passageiro, com ponto de partida ou de chegada em Santa Catarina, em desacordo com as autorizações que as empresas cadastradas na plataforma possuem; e que a Aesc realizasse a fiscalização adequada do serviço, adotando os meios materiais necessários para tanto e aplicando as sanções pertinentes em cada situação, caso verificasse que o transporte foi realizado em desacordo com a autorização expedida.
A Lucretur afirmou que o serviço prestado por ela, por meio da plataforma mantida pela Buser, não tem rotas pré-estabelecidas e regulares de transporte, que as viagens são contratadas pelos usuários do aplicativo, conforme demanda, e estão restritas aos limites de abrangência das cidades atendidas pelas empresas de fretamento cadastradas, e que sequer há garantia de prestação dos serviços, já que depende da adesão de número mínimo de passageiros.
Afirmou que, antes da criação da plataforma, seus serviços eram contratados por meio de ligações telefônicas, e-mails, mensagens ou de forma presencial e que, agora, podem ser contratados pela Buser. “A plataforma da Buser apenas promove uma aproximação entre os passageiros usuários do seu aplicativo e as empresas que são autorizadas a prestar serviços de fretamento particular” e “não há no estado de Santa Catarina nenhuma regra que imponha a observância do circuito fechado”, realçou.
A Buser explicou a situação em que se enquadra: “uma startup de tecnologia que presta atividade de intermediação tecnológica para contratação de viagem coletiva por fretamento privado”. A empresa disse que o usuário da plataforma, ao acessar o site ou o aplicativo, tem a opção de criar o grupo de viagens que for mais conveniente, e escolher data, horário e destino, ou se juntar a um grupo de viagens existente e que igualmente foi criado por algum outro usuário da plataforma. Além disso, afirmou que não possui ônibus, não vende passagens, não usa infraestrutura estatal, não forma pátios clandestinos, tampouco tem rotas ou itinerários fixos.
Segundo a Buser, o serviço prestado é o de “fretamento colaborativo”, em que não há preço fixo para a viagem, há uma estimativa mínima e máxima do valor que será desembolsado por aquele trajeto – que, somados, totalizam o valor do frete pago à fretadora. A diferença entre essa atividade e o transporte público seria que neste há regularidade e a garantia de que a viagem ocorrerá, enquanto naquele não há regularidade nem essa garantia.
O magistrado entendeu que a discussão na ação do sindicato é, no fundo, a natureza do serviço prestado pela Buser, se público ou privado. Ele notou, também, o oportunismo na argumentação o sindicato, na medida em que a entidade alega na ação que a Buser não poderia explorar o serviço porque não participou de licitação que assegurasse a outorga do serviço, mas, que, em outra ação, movida pelo MP, o grupo defende a desnecessidade da licitação para a exploração do serviço público de transporte de passageiros.
“Seria muito exigir da parte coerência entre suas manifestações em processos diferentes. Contudo, se a autora tiver razão na alegação que faz em defesa de seus representados na outra ação, sua tese, aqui, restará prejudicada, pois se a licitação não é exigível para seus filiados, também não o seria para a Buser”, escreveu o juiz Laudenir Fernando Petroncini.